Texto – O lado competitivo dos randonneurs

Por Jan Heine e Melinda Lyon.

Em 2003, a cerimônia de premiação depois do Paris – Brest – Paris (PBP) pela primeira vez ignorou os ciclistas mais rápidos. Ainda que estes atletas tenham pedalado mais rápido que qualquer randonneur na história do PBP, eles foram penalizados em 2 horas por várias infrações ao regulamento. Um dos fiscais, Gilbert Bulté, listou as transgressões: “Empurraram fiscais em um PC, urinaram nas ruas, avançaram inúmeros sinais vermelhos e placas de PARE, foram iluminados por um carro de apoio ilegal, recusaram-se a me deixar passá-los com o meu carro oficial, me desrespeitaram quando me identifiquei como um fiscal.” Robert Lepertel, o organizador do PBP, escreveu no boletim da Federação Francesa de Cicloturismo: “Nunca antes tantos espectadores e participantes sentiram-se tão ofendidos por este desrespeito às regras. Os primeiros 12 ou 15 (…) não tem respeito pelos organizadores, pelos fiscais e por todos aqueles que fazem do PBP uma celebração da perseverança na busca por completar essa difícil jornada. Eles não merecem o nome randonneur, assim como eles não sabem o que significa pedalar sem suporte, de maneira autônoma.” (Cycloturisme nº 58, 10/2003, pág. 34).
De fato, são palavras fortes especialmente porque os ciclistas penalizados não acham que fizeram algo errado ou extraordinário. Além deles não terem seguido cada regra do ‘livro’, eles sentiram que se comportaram como qualquer um o faria numa competição ciclística. Por outro lado, os organizadores disseram que as penalidades não foram dadas só por causa das infrações individuais, mas o espírito dos primeiros ciclistas ficou evidente por seu desrespeito às regras. Evidentemente, houve uma discordância entre os primeiros ciclistas e os organizadores, sobre o que o PBP representa.
Os organizadores sentem fortemente que o PBP não é uma corrida e que o espírito dos randoneiros é ameaçado pelo comportamento destes ciclistas. Mas o que é o espírito do randoneiro? As regras do PBP dão uma pequena luz sobre esse assunto.
As regras do BRM (Brevets Randonneurs Mundiais) simplesmente estipulam que “brevets não são eventos competitivos” (Artigo 12). Mas por que o tempo de cada ciclista concluinte é listado? E por que os organizadores reconhecem recordes e dão prêmios aos mais rápidos em cada categoria? Isso não significa que é uma corrida afinal, para aqueles que querem ser velozes? Assim pode-se desconfiar do porquê que alguns optam por desrespeitar outras regras na sua busca pela liderança.
Para analisar esta aparente contradição entre ‘não competitivo’ e prêmios para os mais velozes, temos que olhar para a história do PBP. Em 1931, os randonneurs se juntaram ao PBP, que era uma corrida profissional desde 1891. Na década de 1950, todas as outras corridas profissionais estavam ficando mais curtas. Com a grande diferença de treinamento para o PBP, deixou de fazer sentido para os atletas bancar toda uma temporada com vistas a uma vitória no PBP. O PBP morreu como corrida profissional. Os randonneurs assumiram o desafio.
Ao contrário dos profissionais, que correm de bike para ganhar a vida, os randonneurs pedalam por diversão. Eles tinham orgulho de serem amadores, amantes do ciclismo. Os randonneurs eram um pouco competitivos às vezes (tem os eventos Audax UAF para os que querem pedaladas não-competitivas), mas era uma competição amigável na maior parte do tempo. Muitos deles se mantiveram envolvidos no esporte pelo resto de suas vidas, seja como participantes (o ciclista mais rápido em 1956, Roger Baumann tem o recorde de 10 PBP’s) ou como voluntários. De fato, Gilbert Bulté, o fiscal mencionado acima, estava em uma das duas tandens que empataram em primeiro, derrotando todas as bicicletas single biker. Roger Baumann, o recordista acima citado, foi voluntário em Villaines-La-Juhel este ano. Os organizador do PBP 2003, Pierre Theobald, também pedalou em vários eventos randonneurs no final da década de 1950.
Obviamente, os organizadores do PBP entendem a competição, e ainda assim não veem o PBP como uma corrida. A diferença é sutil, e tem que se fazer com civilidade. Enquanto a corrida é mais parecida com uma batalha, com apenas um ciclista sendo o vencedor, o randonneur está mais para uma curtição civilizada do ciclismo. Ou, como uma amigo não-randonneur, uma vez colocou: é a busca pelo ciclista perfeito, em qualquer distância, em qualquer tempo, autossuficiente.
Isso não significa que você tem que ser lento, ou que você não pode ser competitivo. Afinal de contas, o PBP é sobre performance: você só ganha uma medalha se terminar dentro do tempo limite. Para muitos ciclistas isso significa pedalar no limite por até 90 horas! E não há nada de errado em se desafiar e tentar melhorar os tempos anteriores. Ou mesmo tentar pedalar mais rápido do que outros. Mas o fato importante se mantém: cada ciclista que completa o PBP é um vencedor. Alguém pode ser o ciclista mais rápido, e até ganhar um troféu, mas não pode dizer que ‘venceu’ o PBP. Todos recebem a mesma medalha. Os espectadores sabem disso, e assim de tudo, saúdam os últimos colocados mais que os primeiros.
A diferença para competir é clara: corridas exultam os ciclistas mais velozes. Por definição, os potenciais vencedores são mais importantes do que os outros ciclistas. Se um ciclista mais lento leva uma volta numa corrida em circuito, no mínimo espera-se que saia do caminho dos ciclistas mais velozes, se não forem completamente retirados da corrida. Num evento randonneur, cada ciclista é igualmente importante. Os ciclistas mais velozes não podem esperar que os mais lentos deem passagem a eles nos PCs. Mesmo do mais rápido se espera que se comporte de uma maneira civilizada e educada em relação aos outros ciclistas, espectadores e fiscais/voluntários. Ser randonneur também é ser autossuficiente. Mesmo se pensarmos que os carros de apoio são permitidos nos PCs, principalmente por que seria difícil bani-los, espera-se que os ciclistas sejam capazes de pedalar por conta própria e enfrentar os desafios da estrada.
Assim como as competições tem sua própria ética, também os randonneurs tem a sua. Estas regras não estão escritas e cada um pode vê-las de maneira diferente. Aqui está nossa visão:
1. Acima de tudo seja educado, o que significa ter consideração pelos outros. Enquanto a agressividade tem seu lugar nas corridas, ela não encontra espaço no estilo randonneur. Tente ser um embaixador do ciclismo, do seu clube ou do seu país;
2. Se você pedalou em um pequeno grupo por um bom tempo, e se todos estavam dividindo o trabalho (consertos, vácuo…), tente terminar junto. Isso pode incluir paradas por pneus furos (a menos que um integrante do grupo tenha vários furos consecutivos por pedalar com pneus velhos ou equipamento errado);
3. Evite se colocar em ‘situações irregulares’. Siga as regras do evento. Ou seja, respeite as regras de trânsito: obedeça placas de Pare e sinais vermelhos. Pedale apenas com ciclistas participantes do Brevet. Se houver um carro seguindo o seu grupo por um longo período de tempo, especialmente à noite, tem algo errado. Se houver um carro oficial da organização do PBP ele será conduzindo apenas com o pisca-alerta ligado para evitar dar uma vantagem para os primeiros colocados. Se você se vir na companhia de carro de apoio ilegal se afaste pedalando muito à frente ou muito atrás dele, mas não fique no grupo de ‘ilegais’. Se você acha difícil desistir da vantagem de um grupo assim, saiba que se você for pego as penalidades serão maiores do que o tempo ganho com a pedalada no grupo;
4. Termine a prova! O objetivo é fazer o melhor possível diante das circunstâncias. Pedalar muito rápido e então desistir porque você não vai conseguir alcançar o seu objetivo pessoal de tempo é o pior dos fracassos. É claro que este espírito não se aplica apenas ao PBP mas a qualquer evento randonneur em geral. Divirta-se, seja veloz se você gosta, desafie-se e aos outros, mas lembre-se: NÃO É UMA CORRIDA

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3 respostas em “Texto – O lado competitivo dos randonneurs

  1. Muito legal o texto. Vejo a bike como um estilo de vida, no qual há respeito pelos próprios limites, aos outros e ao ambiente.

  2. Excelente tradução, um ótimo texto, cada vez mais necessário em tempos de proliferação do #AudaxRacing…

  3. Ótimo texto e muito esclarecedor. É muito bom conhecer as regras não escritas da modalidade.

    Participei de algumas provas e tenho feito ótimas amizades neste meio.

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